Em contagem decrescente para as legislativas de 18 de Maio em Portugal, duas mulheres afrodescendentes com raízes angolanas irrompem com força no cenário político nacional, à conquista do Parlamento português, abrindo um precedente relevante para a representatividade negra e o combate ao racismo estrutural nas instituições portuguesas.
Eva Cruzeiro, rapper e activista, estreia-se nas listas do Partido Socialista (PS), trazendo a voz das periferias e das mulheres negras para o debate político.
Ossanda Líber, empresária e ex-candidata autárquica, lidera o partido recém-formado Nova Direita (ND), apostando numa mensagem de união e disciplina cívica dentro das comunidades imigrantes.
Unidas por origens comuns e experiências de exclusão, mas separadas ideologicamente, ambas encarnam uma nova etapa da luta afrodescendente: a transição do protesto para o poder institucional.

“Estamos numa fase de retrocesso em direitos, onde a violência contra os mais vulneráveis tem aumentado. É por isso que estou aqui”, declarou Eva Cruzeiro, que defende a transformação das estruturas a partir de dentro, com foco na justiça social e no combate à invisibilidade política dos afrodescendentes.

Por sua vez, Ossanda Líber, igualmente nascida na República de Angola e com vivência em França antes de se fixar em Portugal, defende uma abordagem mais conservadora e pragmática da política migratória.
“A política é uma ferramenta que os afrodescendentes ainda não usam com a força que deviam. Se não nos organizarmos, continuaremos a ser os primeiros a sofrer com a desorganização”, afirmou a líder do ND.
Persistência do Racismo Estrutural e Invisibilidade Mediática

A socióloga Luzia Moniz alerta que a representatividade negra continua a ser encarada como “excepcional” na política portuguesa, e não como parte da normalidade democrática.
“A inclusão de Eva nas listas do PS gerou mais polémica do que deveria. Isto demonstra que, para muitos, negros no Parlamento ainda são novidade – mesmo representando uma percentagem significativa da população”, aponta Moniz.
A especialista destaca ainda a ausência de pautas de igualdade racial nos partidos e a escassa presença de afrodescendentes nos meios de comunicação como obstáculos estruturais à participação política plena.
Afrodescendentes: Um Potencial Subaproveitado em Portugal
Estima-se que cerca de 500 mil afrodescendentes vivem actualmente em Portugal, mas a sua influência na formulação de políticas públicas é quase nula. Apesar de iniciativas como o Plano Nacional de Combate ao Racismo 2021-2025 e a criação do Observatório do Racismo e Xenofobia, o envolvimento afrodescendente nas estruturas de decisão “continua a ser a excepção”, segundo especialistas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Entre os entraves, destacam-se:
- O racismo institucional enraizado nos partidos e no Estado;
- A falta de representatividade nos media, onde afrodescendentes aparecem apenas em contextos negativos;
- E a ausência de dados étnico-raciais, dificultando o desenho de políticas públicas específicas.
Da Rua ao Parlamento: A Luta Pela Institucionalização
Nos últimos anos, figuras como Joacine Katar Moreira, Beatriz Dias e Romualda Fernandes levaram questões raciais ao Parlamento, embora sem continuidade. As suas propostas — como a recolha de estatísticas étnico-raciais voluntárias, formação anti-racista nas forças de segurança e o combate à violência racial nas escolas — abriram caminho para o actual momento de viragem.
Eva Cruzeiro e Ossanda Líber representam agora o desafio de transformar visibilidade em influência duradoura, criando novas referências políticas afrodescendentes no país.
Mais do que Representação: Uma Questão de Futuro Económico e Social
A analista Luzia Moniz sublinha que Portugal desperdiça um segmento social altamente qualificado e integrado, o que representa não só uma falha de justiça social, mas também um prejuízo económico directo.
“O país investiu na formação de uma geração de afrodescendentes cujas competências técnicas, científicas e políticas são subaproveitadas. Esta exclusão tem um custo visível em termos de produtividade, coesão social e imagem internacional.”
Quando a Representatividade é Mais que Simbólica
As candidaturas de Eva Cruzeiro e Ossanda Líber demonstram que a política portuguesa está, finalmente, a abrir espaço para outras narrativas, outras vivências e outros corpos. A luta pela equidade racial e pela justiça social ganha, assim, uma nova frente: o Parlamento.
Para Angola e outros países africanos com diásporas significativas, este processo é também uma janela diplomática e económica, pois um Portugal mais inclusivo projecta estabilidade, modernidade e responsabilidade internacional — factores cada vez mais valorizados por investidores, parceiros multilaterais e pela juventude africana que acompanha este debate transnacional, porém desconhecido pela direita, pela extrema direita.
Afrodescendentes à conquista do Parlamento português