Imprensa -Delimitação de funções: o que temos de novo?

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POR ISMAEL MATEUS

A promiscuidade vivida até agora nos órgãos de comunicação social entre as funções de administradores e de responsáveis editoriais não permitia uma grande discussão técnica sobre o problema da autonomia editorial dos órgãos.

Pelo contrário, muitos antigos administradores tomaram as tentativas de abordagem desta matéria como um problema de inveja pessoal contra eles, da parte de pessoas que alegadamente não os queriam ver a tratar de matérias jornalísticas.

Estamos certos que os novos administradores de conteúdos dos órgãos públicos de comunicação social trazem um nível muito superior de debate e que essa melhoria nos permitirá reabrir uma fértil troca de impressões.

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A escolha de jornalistas de perfil executivo para as funções de administradores para os conteúdos é, no geral, uma boa notícia.

Os órgãos terão na sua orientação gente que sabe do que fala e com provas dadas. A dúvida é se esse mesmo perfil executivo, que é positivo, não acabará por se tornar também num factor incómodo.

Nas anteriores direcções, alguns administradores “resolveram” o problema acumulando funções administrativas e jornalísticas, o que era uma clara incompatibilidade.

Se os novos conselhos de administração fizerem um caminho diferente não haverá lugar a acumulação, ou seja, teremos, por um lado, uma administração na qual se inclui um administrador para conteúdos e, por outro, direcções de conteúdos, ou seja, funcionários seniores das empresas que, não sendo administradores, também são responsáveis pelos conteúdos.

A questão importante é saber qual dos dois é o responsável pelos conteúdos editoriais.

O administrador de conteúdos ou o director de conteúdos?

Se um dos órgãos noticiar algo pelo qual venha a ser processado, quem assume em nome da empresa a responsabilidade solidária com o jornalista? Quem é o gestor editorial dos órgãos?

Lamentavelmente, a Lei de Imprensa é omissa em relação aos princípios da autonomia do jornalista nas decisões editoriais e da independência dos jornalistas perante o poder económico.

O princípio da independência, por exemplo, visa de modo genérico criar condições para evitar a influência perniciosa dos grandes grupos económicos sobre as opções editoriais, que se devem basear na ética profissional e nos marcos da liberdade de imprensa.

É o principio da independência que nos permite definir os limites da actuação do proprietário e as garantias da independência jornalística. Ou seja, um proprietário pode cuidar dos lucros, das vendas, do formato comercial ou até das estratégias editoriais, mas não pode imiscuir-se no exercício jornalístico diário.

Compete ao director, enquanto gestor editorial, a orientação e superintendência e determinação do conteúdo. Aliás, o art.º 32 da Lei de Imprensa destaca a necessidade de existência de directores de conteúdos (Director de Informação, de Programas, Chefe de Redacção, Editores) como gestores “jornalísticos”.

Salvo melhor interpretação, o gestor de conteúdos é o director de conteúdos, mas a legislação não é clara e a designação de “administradores para conteúdos” ainda vem baralhar mais a questão.

Ser gestor quer dizer que tem a última palavra, o poder de determinar o conteúdo de uma publicação, sobre a hierarquia das noticias ou sobre quem é ou não entrevistado.

Na prática, apesar dessa independência garantida por lei, nenhum proprietário ou seus representantes (um administrador é um representante do proprietário) verá com bons olhos que o seu órgão publique algo que contrarie frontalmente as suas opiniões e os seus legítimos interesses ou que seja injurioso para ele.

Ademais, ao abrigo do art.º 5º da lei 5/17, Estatuto Jornalista, alínea c) o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de “Funções de direcção, orientação e execução de estratégias comerciais”, o que reforça a convicção de que o gestor consagrado por lei é o director de conteúdo, realçando a lei que esse responsável tem de ser um jornalista em pleno exercício das suas funções.

Parece-nos, pois, claro que a responsabilidade por um dado escrito ou imagem deverá ser imputada solidariamente ao autor do escrito, ao editor e ao director de conteúdos e, finalmente, em casos específicos, também ao órgão de comunicação social; neste caso sim, o Conselho de Administração ou direcção.

Do ponto de vista ético e profissional, o art.º 43.º da Lei 3/17 estabelece para efeitos de responsabilidade e autonomia editorial que “Cada serviço de programas deve ter um responsável pela orientação e supervisão do conteúdo do canal” e no seu ponto 2 que “Cada canal que inclua programação informativa deve ter um responsável pela informação, cuja designação e demissão são da competência do operador de televisão”.

É praticamente a mesma a redacção do art.º 37.º da lei 4/17 (Lei da Rádio) que estabelece que “Todo o serviço de programas deve ter um responsável pela orientação e supervisão dos conteúdos das emissões”.

A todos assistem direitos e responsabilidades. Por um lado, cabe legitimamente ao proprietário definir as estratégias e os interesses gerais perseguidos pelo órgão e em função disso escolher quem melhor deve interpretar essa sua estratégia, por outro a autonomia editorial dos jornalistas deve ser salvaguardada.

A esfera editorial é exclusiva dos jornalistas e quem esteja em situação de incompatibilidade não é formalmente jornalista, logo não pode decidir sobre o dia a dia dos conteúdos.

O legislador fez praticamente tabua-rasa desta matéria na Lei de Imprensa, mas a curto-médio prazo a questão se vai colocar de modo preocupante. Basta que os conselhos de redacção, a comissão da carteira e as associações da classe comecem a funcionar.

Os jornalistas vão bater-se pela sua autonomia editorial, nomeadamente com a eleição ou com parecer vinculativo na escolha dos chefes de redacção, mas também com uma maior valorização dos directores de informação. Um DI não é um funcionário qualquer que pode ser demitido por não cumprir ou por discordar do patrão.

O Director de Informação é o responsável/gestor editorial, intérprete da liberdade de imprensa e por isso a sua autonomia deve estar claramente demarcada e defendida.

Em muitos países, a nomeação e demissão dos directores de informação dos órgãos públicos passa pelo parecer da entidade reguladora, exactamente para que se possa salvaguardar que desentendimentos de carácter editorial não permitam ao proprietário impor a sua vontade.

O perfil de um DI deve oferecer garantias de isenção e pluralismo, além de características pessoais como a seriedade, carisma e profissionalismo.

Neste momento, em Portugal, o presidente do conselho de administração da RTP e o director de informação não defendem a mesma posição acerca da transmissão de touradas, sendo um a favor e outro contra.

Se por um lado é competência do gestor decidir sobre o que se deve ou não transmitir, é atribuição da administração definir as linhas gerais da actuação da estação, neste caso a transmissão de eventos de grande interesse público. Terá de ser uma entidade externa a legislar sobre a matéria.

Num futuro breve problemas destes se vão colocar aqui muito por culpa da omissão na Lei de Imprensa e do não funcionamento da ERCA, que deveria certamente reflectir e fazer “jurisprudência” sobre esta matéria.

CA