A prevalência da insegurança alimentar severa em Angola passou de 21% entre 2014 e 2016 para 31% entre 2020 e 2022 e 88% da população, ou seja, mais de 30 milhões de angolanos, não consegue ter acesso a uma dieta saudável. É, assim, importante alterar a visão historicamente conformada, mas ainda dominante em Angola, sobre a Segurança Alimentar e Nutricional.
MUDANÇAS RECENTES NA AGRICULTURA E NA ALIMENTAÇÃO
O povo angolano conquistou a sua independência em Novembro de 1975, após vários anos de luta armada. Porém, uma guerra civil instalou-se no país até 2002. Angola, um dos mais jovens Estados do mundo comemorou recentemente 20 anos de paz. Duas décadas de avultados investimentos públicos(1) visando concretizar um dos principais objectivos da independência: o da melhoria das condições de vida da maioria da população. A questão da agricultura e da alimentação são centrais nesse objectivo.
Contudo, o mundo alimentar está a avançar mais rapidamente do que as instituições nacionais e supranacionais que o regulam, e a pandemia só acelerou esse processo. Refira-se, por exemplo, que com o advento das tecnologias de automação agrícola digital, a mudança climática e a urbanização aumentaram, também, a preocupação com as desigualdades sociais. Daqui resultam os maiores desafios para os Estados nacionais na concepção e a implementação de novas políticas e programas para a promoção da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no contexto da actual transformação do sistema alimentar global.
Desafios ilustrados no recente relatório “O Estado da segurança alimentar e nutricional no mundo” (SOFI, pela sigla em inglês), uma produção conjunta da FAO, FIDA, PMA, OMS e UNICEF,(2) indica que cerca de 30% da população global – 2,4 mil milhões de pessoas – estavam em insegurança alimentar moderada ou grave em 2022, dos quais cerca de 900 milhões (11% das pessoas no mundo) estavam em situação de insegurança alimentar grave. O estudo realça, também, que quase 3,2 bilhões de pessoas em todo o mundo não podiam assegurar uma dieta saudável(3) em 2020. Em África, em função da acentuada urbanização, a situação é particularmente mais grave nas áreas periurbanas (1,5 vezes maior).
No caso de Angola, o relatório indica que a prevalência da insegurança alimentar severa passou de 21% entre 2014 e 2016 para 31% entre 2020 e 2022 e que 88% da população, ou seja, mais de 30 milhões de angolanos não conseguem ter acesso a uma dieta saudável.
São informações preocupantes que ilustram a complexidade actual do tema e reforçam a noção de que é importante alterar a visão, historicamente conformada, mas ainda dominante em Angola, sobre a Segurança Alimentar e Nutricional.
TRAJECTÓRIAS HISTÓRICAS
Os quase 50 anos do novo Estado angolano são uma gota de água na trajectória de superação da insegurança alimentar e nutricional que, tal como no Brasil, tem raízes muito profundas. Vale a pena referir algumas.
O triângulo económico-geográfico engendrado na confluência dos três impérios portugueses evoluiu desde cedo assente no domínio de alguns produtos agrícolas dominantes, que, por sua vez, geraram zonas dominadas(4). É em São Tomé que se inicia a primeira sociedade escravocrata açucareira como aquela que será também implementada no Brasil. Neste triângulo, a situação de insegurança alimentar em que Angola foi mantida por mais de 300 anos serviu o propósito do fornecimento de escravos para o Brasil. Mas se no Brasil a escravatura foi acabando graças ao fim das fontes africanas e da incapacidade de reproduzir, dentro do país, a mão-de-obra cativa, o mesmo não se passou em Angola. Aqui era possível essa reprodução. O regime de “contrato” substitui a escravatura, mantendo-a em outros moldes praticamente até meados do século XX. Note-se que o “Estado Novo” português não reverteu as relações sociais antes cristalizadas. Pelo contrário.(5)
Por estas e outras razões, a emergência e consolidação de um sector produtivo e transformador assente em produtos endógenos, da agricultura familiar e camponesa, não se iniciou no período colonial angolano como também não ocorreu (nem poderia ocorrer) nos primeiros anos após a independência quando uma guerra civil destruiu as principais infra-estruturas do país deixando, também, mais de 500.000 mortos. Nesse contexto, e por algumas décadas, trabalhou-se, essencialmente, numa óptica de “emergência alimentar”.
Apenas em 2002 se abre um caminho para o surgimento de estratégias de médio e longo prazo para a redução da pobreza e da fome. Em 2004, dois anos após o término do conflito armado, o governo angolano elaborou a sua Estratégia de Combate à Pobreza (ECP) que, na altura, afectava 68% da população angolana, dos quais 26% se encontravam em condição de pobreza extrema (equivalente a até 0,75 dólares por dia). Em 2009, com o apoio técnico da FAO, foi aprovada a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (ESAN), uma das primeiras estratégias africanas com uma visão multissectorial e multi-actores.
A ideia base era a de que o país não alcançaria a segurança alimentar se os sectores primário e secundário da economia (agricultura, pescas e indústria) mas, também, o comércio, a saúde e a educação, o ambiente, entre outras áreas de governo relevantes, não estivessem convenientemente coordenados com o objectivo prioritário de vencer a insegurança alimentar e nutricional. A ESAN previu a criação de um órgão coordenador, liderado pela Presidência da República, denominado por Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSAN).
Algumas das acções previstas no seu plano de acção foram implementadas, mas lamentavelmente não o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Actualmente, dos nove Estados-Membro da CPLP apenas Angola e a Guiné Equatorial não montaram estes importantes órgãos.
Expansão