Os interrogatórios a Ricardo Salgado e as contradições reveladas com a comissão de inquérito ao BES mostram uma teia de interesses cruzados em Angola. Salgado apoiou-se nela para crescer, mas perdeu-se na mesma no momento da crise…
Em A conspiração dos poderosos, o jornalista Luís Rosa revela os depoimentos de Ricardo Salgado no DCIAP para construir uma investigacão “sobre os segredos do ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo” e a queda do grupo financeiro que liderava.
O livro será lançado esta semana – e o PÚBLICO faz aqui a pré-publicação de um dos seus capítulos: A importância de Angola. Na ascensão de Salgado e do BES – mas também na sua queda.
A Importância de Angola
“Há um dia que Ricardo Salgado nunca esquecerá. Foi o dia em que a sua mãe, Maria da Conceição Espírito Santo, morreu em Cascais. Tinha 90 anos.
Maria Espírito Santo teve alguns infortúnios ao longo da sua vida. Viu o seu pai morrer aos 55 anos e separou-se de João Salgado dez anos após o casamento católico contraído a 7 de setembro de 1942 – uma condição que não era bem vista no seu meio social.3 Teve 6 filhos: Mary (como a sua mãe), Ricardo, Ana Maria, António, Rita e João. O seu segundo filho, Ricardo Salgado, viria a ser o líder do BES a partir dos anos 90 – uma das maiores alegrias de Maria Espírito Santo pela ligação especial que tinha com Ricardo.
No momento em que chegou a notícia que nenhum filho quer ouvir, Ricardo Salgado estava prestes a resolver um dos grandes problemas que marcavam o GES naquele ano de 2010: a Escom – famosa pela sua intermediação na venda de dois submarinos a Portugal e pela exploração de diamantes e promoção imobiliária em Angola. E apesar de andar muito preocupado com o estado de saúde da mãe, Salgado estava igualmente aliviado.
Aliviado porque pensava que tinha conseguido vender por 483 milhões de dólares (cerca de 368 milhões de euros no câmbio da época) a Escom. Uma verdadeira operação de sonho quando a empresa se debatia em 2010 com uma situação líquida negativa de 64,5 milhões de euros – e com tendência para agravar-se.
Era, portanto, um grande dia para «O Grupo», como Salgado gostava de referir-se ao GES. Livrava-se de um pesadelo financeiro mas, acima de tudo, de uma empresa que causava danos reputacionais por estar a ser investigada pela Justiça portuguesa desde 2004 devido a um alegado envolvimento no pagamento de comissões ilícitas no âmbito da venda de dois submarinos a Portugal.
Era esse o sentimento de Ricardo Salgado quando foi surpreendido com uma chamada telefónica a dar-lhe conta do estado de saúde periclitante de Maria da Conceição. Faltava pouco tempo. Chamou o motorista e foi para Cascais mas não chegou a tempo de despedir-se da sua mãe. 28 de dezembro de 2010 é um dia que não sairá da sua memória.
O líder da Sonangol e o general angolano feito empresário
Minutos antes de sair da sede do BES, tinha assistido à assinatura do contrato-promessa de compra e venda da Escom – Espírito Santo Commerce nos primórdios da empresa. Seriam resolvidos vários problemas e ganhava-se muito dinheiro – fundos essenciais para acorrer aos problemas de liquidez do GES que já em 2010 eram ocultados do resto do mundo.
Por tudo isto, Ricardo Salgado tinha feito questão de estar presente no ato de assinatura dos contratos de compra e venda da Escom para receber com pompa e circunstância dois convidados de última hora: Manuel Vicente, então presidente executivo da Sonangol e futuro vice-presidente da República de Angola, e o general Leopoldino Nascimento «Dino», chefe de comunicações do presidente José Eduardo dos Santos, um dos randes empresários angolanos e apontado como um dos «testa-de-ferro» do líder do MPLA.
Estes eram, nas palavras de Ricardo Salgado, os «tradicionais parceiros» que muito tinham ajudado «O Grupo» em Angola.
Numa das salas nobres da sede do Banco Espírito Santo (BES), na Avenida da Liberdade, estavam igualmente presentes os representantes da empresa vendedora (a Espírito Santo Resources, empresa offshore com sede nas Bahamas) e da empresa compradora (a Newbrook, outra sociedade offshore localizada no Panamá): o comandante António Ricciardi (pai de José Maria Ricciardi e presidente da Espírito Santo International e do Conselho Superior do GES) e José Castella (controller financeiro do GES e homem de mão de Salgado) em nome da ES Resources, e a advogada Ana Bruno como representante da Newbrook.
Presentes estavam igualmente os representantes da Opway Engenharia que iriam vender cerca de 33% do capital da Opway Angola à Escom por cerca de 15 milhões de dólares (cerca de 11,5 milhões de euros na época) – o único negócio que verdadeiramente se concretizou mas que era feito no contexto da alienação da Escom aos novos donos.
Mas por que razão Manuel Vicente e o general «Dino» estavam presentes na assinatura do contrato-promessa da venda da Escom e da Opway Angola? Eram eles os verdadeiros compradores?
De acordo com as declarações de Álvaro Sobrinho, ex-presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA), de Hélder Bataglia e de Luís Horta e Costa, presidente e administrador da Escom, produzidas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso BES/GES em 2014/2015, não havia dúvidas:
A petrolífera pública Sonangol era a compradora da Escom através da sociedade Newbrook. «Quem compra a Escom é a Sonangol com a promessa de a Sonangol comprar a Newbrook», afirmou Sobrinho no Parlamento. Mais do que uma empresa de capitais públicos, a Sonangol é o fundo soberano de Angola. É Angola.
Contudo, cinco meses antes dessas declarações na CPI do caso BES, Ricardo Salgado tinha dado outra versão ao juiz Carlos Alexandre e ao procurador Rosário Teixeira durante a investigação do caso Monte Branco. Apesar do sinal do negócio (cerca de 52,2 milhões de euros) pago à empresa do GES que vendeu a Escom ter saído dos cofres da Sonangol, os alegados compradores seriam Manuel Vicente e o general Leopoldino Nascimento «Dino». Salgado confirmou ainda ao Ministério Público que Vicente e «Dino» tinham assinado presencialmente os contratos seja da compra da Escom, seja da Opway Angola – não que tal confirmação fosse necessária porque o procurador já tinha apreendido os documentos em buscas realizadas ao BES e à sede do GES na Rua de São Bernardo, em Lisboa, e as assinaturas dos angolanos constavam dos mesmos.
Ricardo Salgado: Efetivamente conseguiu-se um acordo para a venda em 2010, foi fechado num contrato no BES no qual o comprador foi uma sociedade offshore que foi indicada, julgo eu, pelos compradores.
Juiz Carlos Alexandre: Quem eram os compradores?
Ricardo Salgado: Os compradores eram os angolanos tradicionais parceiros do Grupo, nomeadamente, era o general «Dino», [e] o Manuel Vicente.
Juiz Carlos Alexandre: Em nome próprio?
Ricardo Salgado: Não, não em nome próprio. Eles estavam a comprar através de uma sociedade offshore cujo nome eu agora não me lembro.
Juiz Carlos Alexandre: Mas estavam a comprar para si próprios?
Ricardo Salgado: Era para eles, sim.
Juiz Carlos Alexandre: Para eles, para o Leopoldino Nascimento e para o Eng. Manuel Vicente. E ainda havia mais algum parceiro?
Ricardo Salgado: Em termos individuais, foram os que apareceram na assinatura do contrato a 28 de dezembro de 2010 (…) Há bocado ia-lhe contar que esta é uma data para mim inesquecível porque eu recebi os senhores, estava presente na reunião (eu não tinha que assinar) e a minha mãe estava a falecer de maneira…
Juiz Carlos Alexandre: Peço desculpa…
Ricardo Salgado: … que meti-me no carro e quando cheguei a casa da minha mãe, em Cascais, ela já tinha falecido. Eu não assisti a uma parte da reunião e não posso recordar-me de todos os detalhes da reunião. (…) Sei que estava lá o Manuel Vicente – ainda vi o Manuel Vicente e o «Dino» assinarem e saí descansado. Descansado… E a pensar que a minha mãe foi para o céu certamente, que era uma santa, mas aliviou-nos desta carga da Escom.
No total, os negócios que estavam a ser contratualizados valiam mais de 500 milhões de dólares (cerca de 381 milhões de euros à data da operação). A propósito de uma notícia do Correio da Manhã que o dava como suspeito do caso Monte Branco, Leopoldino Nascimento negou, em agosto de 2014, através da sua assessoria de imprensa, que tivesse assinado qualquer contrato-promessa de compra e venda da Escom.
A mina do Luó e o BESA
Angola começou a ter importância para o GES de Ricardo Salgado a partir dos anos 90 com a Escom. Através de Hélder Bataglia, igualmente fundador da Escom e o seu eterno presidente, a empresa começou por ser um trader fundamental na importação e exportação de produtos alimentares básicos para uma Angola em tempo de guerra civil. Mais tarde alargou a sua atividade para o sector mineiro angolano, nomeadamente para a exploração de diamantes, aliada a sócios angolanos (que eram uma espécie de silent partner) e aos russos da Alrosa.
O GES e a Alrosa (um grupo estatal russo) investiram capital na mina de Luó, a segunda mina de diamantes de Angola, e recolheram bons lucros até que o governo de José Eduardo dos Santos mudou as regras no final da década de 2000: qualquer diamante que fosse encontrado teria de ser entregue ao Estado a troco de uma remuneração fixa para o produtor – remuneração essa que o GES considerava baixa.
Os russos foram os primeiros a partir, vendendo a sua quota-parte à Escom em 2009 por cerca de 4,3 milhões de euros. Ricardo Salgado e o GES perceberam rapidamente que as novas regras, aliadas a uma queda dos preços no mercado mundial de diamantes, não permitiriam à Escom continuar a ter uma rentabilidade atrativa e planearam a venda aos angolanos.
Ricardo Salgado: Acontece que, ao longo dos anos, foram-se investindo capitais avultados nessa exploração mineira. Os parceiros russos também punham a sua quota-parte, os angolanos, como de costume, normalmente não investem (são os outros que investem), e a empresa foi desenvolvendo as suas pesquisas (…) À medida que o tempo ia evoluindo, entrámos no período da crise, em 2008, e eu não lhe sei agora precisar exatamente quando, talvez 2009/2010, houve uma queda importantíssima no valor dos diamantes. E a empresa começou a entrar em sérias dificuldades. Os nossos parceiros angolanos, que são parceiros de sempre desde a constituiçãodo BESA, tinham mostrado interesse em comprar a empresa e eu, embora sendo da área financeira e não tendo diretamente a ver com a área não financeira, fiz muita força para que a empresa fosse vendida em 2009/2010.
Manuel Vicente e o general «Dino», os habituais parceiros do GES em Angola, apareceram, assim como os naturais compradores da Escom. Já tinham sido estes os parceiros que tinham «aberto as portas» a Ricardo Salgado para a licença bancária que permitiu ao BES abrir o Banco Espírito Santo Angola (BESA) no dia 24 de janeiro de 2002 com um capital de 10 milhões de dólares.
«Dino», juntamente com o general Hélder Vieira Dias «Kopelipa», o todo-poderoso chefe da Casa Militar do Presidente da República com fortes ligações aos serviços secretos e ministro de Estado de José Eduardo dos Santos, vieram mais tarde a posicionar-se como acionistas de referência do BESA através das sociedades Portmil (da qual terá feito parte Manuel Vicente mas que era liderada por «Kopelipa» e que chegou a ter 24% do banco) e Geni (liderada por «Dino» que teve uma participação de 18,99% do BESA).
O BESA atingiu uma importância muito significativa nos resultados do BES. De acordo com Álvaro Sobrinho, CEO do BESA entre 2002 e 2013, a subsidiária de Angola teve um peso de 30% nos lucros de 572 milhões de euros de 2009 e de 50% nos resultados de 550 milhões de euros apresentados pelo BES no ano fiscal de 2010. No ano seguinte, enquanto o BES apresentou um prejuízo de 100 milhões de euros, o BESA atingiu resultados positivos de 262 milhões de euros.
Como surge a offshore Newbrook?
Voltemos à Escom e ao negócio de compra e venda. No contrato-promessa assinado na sede do BES a 28 de dezembro de 2010, o nome da compradora era uma sociedade offshore chamada Newbrook.
Durante a investigação do processo Monte Branco, que tem a sociedade suíça Akoya participada por Álvaro Sobrinho e Hélder Batáglia no centro das suspeitas originais de fraude fiscal e branqueamento de capitais, a equipa liderada pelo procurador-geral adjunto Rosário Teixeira conseguiu perceber a forma como surgiu essa empresa – informações essas que foram confirmadas por Ricardo Salgado.
Explicou Salgado, como já vimos, que Manuel Vicente e «Dino» não queriam aparecer com sociedades abertas neste negócio e solicitaram em 2010 a Álvaro Sobrinho, então presidente do BESA que era parcialmente detido por «Dino» e por «Kopelipa», para indicar uma sociedade offshore para ser usada na operação. Sobrinho indicou a Newbrook, uma sociedade com sede no Panamá que era por si detida, mas terá participado na operação como um mero testa-de-ferro.
Hélder Bataglia já tinha afirmado na CPI do caso BES algo semelhante: «Álvaro Sobrinho não era parte do negócio. A Newbrook só serviu para facilitar a concretização do negócio naquele dia, àquela hora. Não intermediou nada», afirmou o líder da Escom.
Sobrinho confirmou: «A Newbrook não é parte do acordo; a Newbrook compra a Escom com a promessa de a Sonangol comprar a Newbrook», afirmou o ex-líder do BESA, omitindo os nomes de Manuel Vicente e de «Dino» como os beneficiários da compra.
Ou seja, a Newbrook é quem promete comprar a Escom mas o dinheiro do sinal nunca terá passado por nenhuma conta daquela sociedade.
A Sonangol transferiu o valor do sinal a partir de uma conta no Dubai para uma conta na Suíça em nome de outra sociedade offshore chamada Ocean Private Limited e esta sociedade transferiu o dinheiro para a conta da Espírito Santo (ES) Resources no Banque Privée Espírito Santo. A Ocean Private, por seu lado, era detida por Hélder Bataglia.
O valor do tal sinal pago com dinheiro da Sonangol diverge consoante a fonte: Ricardo Salgado foi confrontado pelo procurador Rosário Teixeira com documentação bancária que atestava uma transferência de 52,2 milhões de euros mas Álvaro Sobrinho falou na CPI do caso BES num valor de cerca de 85 milhões de dólares (cerca de 64 milhões de euros, de acordo com o câmbio de 28 de dezembro de 2010).10 Certo é que o dinheiro entrou na conta bancária da ES Resources e desapareceu para local desconhecido.
E de quem era a Ocean Private Limited? De Hélder Bataglia. Pela venda dos seus 23,3% na Escom mais os suprimentos que tinha a receber da sociedade, Bataglia contratualizou que teria a receber cerca de 146 milhões de dólares (cerca de 112 milhões de euros ao câmbio da época) dos compradores da Newbrook. Aparentemente, Bataglia nunca recebeu este valor.
Quando constituiu Ricardo Salgado como arguido, Rosário Teixeira tinha a convicção de que os 15 milhões de euros que a ES Enterprises tinha transferido em novembro de 2010 (um mês antes da assinatura do ontrato-promessa para a venda da Escom na sede do BES) para a sociedade offshore Green Emerald era um adiantamento a Bataglia face à receita expectável pela venda definitiva da Escom à Newbrook.
Procurador Rosário Teixeira: Há um pagamento da tal ES Enterprises para uma sociedade offshore do senhor Hélder Bataglia, que é a Green Emerald, de 15 milhões de euros. Naquilo que o senhor nos diz agora não tem nada a ver com este contrato.
Ricardo Salgado: Deixe-me procurar a documentação. Eu estou convicto de que não.
Procurador Rosário Teixeira: É que não «joga» com o facto de [ser] numa data muito próxima, novembro de 2010. A interpretação que nós fazemos é que esses 15 milhões pagos pela ES Enterprises para a Green Emerald serão um adiantamento por conta desta venda. Isto é, a parte que o Hélder Bataglia teria neste adiantamento e que por via de facilitar as vendas da Opway e facilitar a venda da própria Escom foi pago ao Hélder Bataglia. Qual é o fundamento, qual é o suporte para que a ES Enterprises pague ao senhor Hélder Bataglia 15 milhões de euros em novembro de 2010?
Ricardo Salgado: Deve haver documentação sobre isso. Se me permitir, procurarei essa documentação e entregarei tão rapidamente quanto possível.
Não há notícia de que o ex-banqueiro tenha entregado alguma documentação. Mas, mais tarde, no âmbito da Operação Marquês e com mais informação enviada pelas autoridades suíças, Rosário Teixeira mudaria a sua interpretação face à prova recolhida e ligaria essas duas transferências para a Green Emerald com pagamentos a Carlos Santos Silva – o alegado testa-de-ferro de José Sócrates.
O pedido de ajuda a Eduardo dos Santos
Se o negócio da Opway Angola foi concretizado, o negócio da Escom emperrou. As razões continuam a não ser totalmente claras. Sabe-se apenas que os angolanos começaram a colocar em causa a avaliação do património a Escom – cuja avaliação original apontava para um balanço na ordem dos 800 milhões de dólares –, tentando baixar o valor do negócio.
Certo é que Manuel Vicente troca a Sonangol pelo cargo de vice-presidente de Angola em setembro e 2012 e o seu sucessor, Francisco de Lemos Maria, recusou-se a assinar o contrato final da compra da empresa do GES e a pagar os restantes 386 milhões de dólares (cerca de 296 milhões de euros à data da assinatura do contrato-promessa em 2010) contratualizados. Estamos em 2013 e o problema da Escom é um grão de areia face ao problema dos problemas:
– a viabilidade do GES devido à dívida oculta da ESI já chega aos 1,3 mil milhões de euros;
– e a descoberta regular de novos problemas, como o Banco Espírito Santo de Angola, que teria concedido créditos de alto risco num valor total superior a 6,8 mil milhões de dólares (cerca de 5,6 mil milhões de euros ao câmbio atual).
A tempestade perfeita estava a chegar, o Banco de Portugal a apertar, a família a desmoronar-se e o outrora poderoso Ricardo Salgado não conseguia controlar a situação. E voltou-se para Angola.
Viaja para Luanda no início de outubro de 2013 na companhia de Amílcar Morais Pires e do advogado Daniel Proença de Carvalho (que também está à procura de investidores angolanos para a compra de uma posição no grupo de media Controlinveste detido pelo empresário Joaquim Oliveira) para um encontro de urgência com o presidente José Eduardo dos Santos.
Contra a promessa de um investimento de 500 milhões de dólares (cerca 384,6 milhões de euros ao câmbio de 1 de outubro de 2013) na economia angolana (para o qual não tinha fundos), Salgado consegue a promessa de Eduardo dos Santos de emitir uma garantia soberana de 5700 milhões de dólares (cerca de 4570 milhões de euros) que cobria cerca de 70% dos empréstimos que o BESA tinha feito durante a gestão de Álvaro Sobrinho – entretanto afastado pelos generais «Kopelipa» e «Dino» do Conselho de Administração do BESA.
Ricardo Salgado tem o assunto da Escom atravessado na garganta e, após a audiência com José Eduardo dos Santos, aborda também este dossiê em privado com o presidente angolano.
Ricardo Salgado: (…) posso contar que estive em Angola, a 3 de outubro do ano passado [2013], por causa da garantia do Governo angolano ao BESA. Fui agradecer ao senhor presidente da República de Angola [José Eduardo dos Santos] e depois da reunião pedi ao senhor presidente um bocadinho para falar da Escom porque a operação [de compra e venda] ainda não estava concretizada. E o senhor presidente disse-me: «A Escom é importante para Angola. Fale com o general Dino.»
No dia 18 de junho de 2014 fui a Angola com o Dr. Amílcar Morais Pires, para ver se o processo da garantia evoluía no bom sentido porque nós estávamos a ser pressionados pelo Banco Central Europeu e pelos auditores (…) E eu fui lá dizer: «Sr. vice-presidente de Angola [Manuel Vicente], este processo tem de evoluir.» (…) Falei- -lhe nisso e depois no fim [Manuel Vicente] disse-me: «ah não me diga que ainda não está resolvido». E é assim que nós vivemos. (…) Os angolanos indicaram agora um grupo chamado Gen Corp, que pertence ou que está associado ao banco russo VTB, (…) que está a mostrar interesse na Escom. (…) a única coisa que eu lhes peço encarecidamente é que não pensem que nós estamos a fazer isto para maquilhar ou para, de qualquer forma evitar, os impactos nas nossas contas. Aquilo é uma situação efetiva, económica, degradada em quase permanência. Agravada depois por outro facto, esse relacionado com o BESA.
Procurador Rosário Teixeira: Falou agora desta reunião recente de 18 de junho [com o Manuel Vicente]. Aquilo que o senhor doutor Ricardo estava a dizer dá ideia de que há um mês atrás ainda mantinha este contrato de venda a investidores angolanos como válido. Isto é, precisava era do pagamento.
Ricardo Salgado: Esse contrato não foi cumprido, há um incumprimento. De maneira que a única coisa que nós podíamos fazer era executar o contrato. E por uma questão, que peço-lhes que entendam, porque são os mesmos parceiros que nós temos no banco, nós não decidimos entrar por aí. Nós poderíamos ter executado o incumprimento. Eles são acionistas importantíssimos, têm 49% do BESA. E nós temos procurado conversar com eles para ver se encontramos uma solução. E essa solução tem sido difícil. Agora o decurso inexorável do tempo está a levar a Escom para uma situação terrível.
E levou mesmo. A holding da Escom, chamada Escom Investments BV e com sede na Holanda desde 2009 depois de ter tido sede no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas, declarou-se insolvente em novembro de 2016.
O acordo de revogação
Há uma pergunta relevante sobre o sinal que foi pago pelos angolanos ao GES: se o negócio não se concretizou, por que razão o sinal de 52,2 milhões de euros não foi devolvido à Newbrook?
A verdade é que, não só esses fundos não foram devolvidos, como ficaram do lado da ES Resources – a entidade do GES que detinha a maioria do capital da Escom e que era a entidade vendedora. Como? Através de um acordo de revogação do contrato-promessa assinado a 21 de outubro de 2013 por duas pessoas que já estavam incompatibilizadas nessa altura: Ricardo Salgado e Álvaro Sobrinho.
Procurador Rosário Teixeira: Para si este contrato continuava válido, suscitou perante o Eng. Manuel Vicente o problema [do cumprimento do mesmo], e agora nos disse que apenas não o executaram judicialmente por uma questão de estratégia, até porque os parceiros eram os mesmos [do BESA] e não queriam criar problemas. Então vou-lhe mostrar um documento que foi ontem [23 de julho de 2014] apreendido (…) que é um acordo de revogação (…). A busca (…) que corresponde à busca nas instalações da ES Resources, na Rua de São Bernardo. Então este acordo está assinado pelo senhor doutor [Ricardo Salgado], e está assinado pela Newbrook, como representação aparece o senhor doutor Álvaro Sobrinho. Este é outro mistério. Este acordo tem a data de 21 de outubro de 2013. Em junho, quando insiste com Manuel Vicente para resolver o problema da Escom, o senhor doutor [Ricardo Salgado] já sabia que isso estava revogado. (Salgado lê o contrato de revogação)
Ricardo Salgado: Isto é a minha assinatura efetivamente e não me recordo. Pronto, estou-me a recordar. Peço desculpa. Não me recordei desta revogação mas esta revogação é com a Newbrook. Repare que nós, entretanto, em maio de 2013, estávamos a escrever aogeneral «Dino» para propor a resolução do problema e provavelmente em consideração deste contrato de compra e venda e revogação. Nós já revogámos este mas esta proposta não foi ainda executada. (…)
Ricardo Salgado: Aqui o que me parece que há é o objetivo de afastar a Newbrook/Álvaro Sobrinho desta transação.
Procurador Rosário Teixeira: Esse é outro problema que é também umas das minhas perplexidades. (…) foi-nos dito pela Dr.ª Ana Bruno, que ficou encarregada de retirar o Dr. Álvaro Sobrinho da venda da Newbrook. (…) por isso mesmo quando aparece a Newbrook a comprar isto em 2010, tem as assinaturas do Manuel Vicente e do general «Dino». Em princípio, seriam eles os beneficiários finais da Newbrook.
Ricardo Salgado: Mas eles não assinaram o contrato. Assinaram só presencialmente.
Procurador Rosário Teixeira: (…) E a minha questão é: porque é que nesta data, quando aparece a Newbrook, aqui aparece representada pelo Álvaro Sobrinho?
Ricardo Salgado: Não lhe sei explicar. Aquilo que lhe posso dizer é que eu também não estou dentro dos detalhes, embora tenha assinado isso e deveria lembrar-me dessa assinatura, de todos os detalhes (…).
Procurador Rosário Teixeira: Mas tem ideia de ter negociado com o senhor Álvaro Sobrinho?
Ricardo Salgado: Não, de forma alguma! Não negociei nada. Eu já não falo com o Álvaro Sobrinho há anos. Foi provavelmente a nossa área jurídica que tratou disso e pediram-me para assinar. Porque aí tem uma coisa importante: a perda do sinal. O sinal de que poderiam amanhã reclamar a devolução.
Na prática, e tendo em conta o acordo de revogação, o GES ganhou 52,2 milhões de euros sem ter vendido nada à Newbrook.
Além desse mistério, havia um problema: a contabilidade da ES Resources não refletia a existência desse acordo de revogação.
Isto é, a partir do momento em que a ES Resources tem consciência de que não será possível concluir o negócio, a contabilidade da holding da área não financeira do GES no final de 2013 deveria ser um espelho dessa realidade, assim como também deveria conter o agravamento da situação financeira da Escom.
Por isso mesmo, Rosário Teixeira recordou a Salgado que as contas da ES Resources refletiam o seguinte sobre o negócio da Escom:
–uma expectativa de receita total na ordem dos 100 milhões de euros;
–e uma situação liquida negativa de cerca de 64 milhões de euros da
Escom que também não estava referenciada nas contas da ES Resources (e, consequentemente, nas contas da ESI).
–Ou seja, a ES Resources continuava a ser referida como entidade vendida, existindo um crédito do lado do ativo inscrito com um valor de 100 milhões de euros por conta da venda da ES Resources.
Portanto, além do problema da dívida oculta de cerca de 1,3 mil milhões de euros, as contas da ESI também tinham um problema chamado Escom. É mais uma exemplo da alegada manipulação que existia na contabilidade do GES.
Ricardo Salgado: Senhor procurador, estou a ver que o senhor é um expert em matérias financeiras, estou a apreciar as suas conclusões, mas gostava de recordar que houve uma avaliação feita e que foi facultada aos compradores em que mostra o valor patrimonial importante da Escom, independentemente do prejuízo que já podia ter nessa altura, apresentava um valor significativo. (…)
Procurador Rosário Teixeira: (…) como não existe outro acordo de venda, isso não implicaria que ao final de 2013 tudo quanto é bom e mau da Escom devesse voltar à ES Resources? Isto é, em 2013 as contas da ES Resources tinham de refletir a existência da Escom lá metida dentro para o bem e para o mal. Só que havia este acordo de revogação assinado em outubro de 2013.
Ricardo Salgado: Historicamente deve lá estar. Deve estar na Resources.
Procurador Rosário Teixeira: Mas não está. Continuam a estar refletidas algumas responsabilidades financeiras mas a Resources não está na ES International. Continua a figurar como entidade vendida [quando o contrato foi revogado] e o que lá está, aliás, é um crédito que a ESI teria sob terceiros, o tal direito ao pagamento, crédito esse que foi baixando de valor. Começou pelos 400 e não sei quantos milhões de euros e agora já vai nos 100 milhões de euros.
Ricardo Salgado: Senhor procurador, tem toda a razão. De facto, esse acordo de revogação deveria ter obrigado a recontabilizar na Resources esse aspeto, mas eu não sou contabilista da Resources. Eu não tenho tempo, nunca tive tempo, para estar a ver em detalhe as contas da Resources nem de todas as outras do universo não financeiro sobre essa matéria. Portanto, o senhor procurador está a chamar a atenção para um ponto em que tem inteiríssima razão. Se, de facto, esse acordo de revogação produziu estes efeitos, devia ter voltado à Resources em vez de um crédito sobre eventuais terceiros e efetivamente a posição patrimonial da Escom.
Mais uma vez, Salgado responsabilizava a estrutura do GES. Certo é que a venda da Escom não se concretizou e a ESI, detentora da ES Resources, entrou em processo de insolvência em outubro de 2014.
Público