A ruptura entre a cidade e a periferia levou à ocupação de locais impróprios e de forma desordenada, que criou grandes dificuldades a quem tem a responsabilidade de administrar a capital.
Quem o diz é o engenheiro Manuel Resende de Oliveira, ministro do Urbanismo, Obras Públicas e Habitação, no primeiro Governo de Angola independente.
Aos 82 anos, revela-se uma autoridade para falar das obras no país, sobretudo, na capital, que considera um lugar “quase ingovernável”.
Ele saúda, contudo, o Plano Director Metropolitano de Luanda, que diz ser um “instrumento de grande valia”. À entrevista com o homem que chegou a Angola em 1963 e dirigia a construção de 36 pontes.
Qual seria a saída, para o ordenamento da cidade e para dar uma melhor qualidade de vida aos seus habitantes?
Para Luanda ser ordenada, teria que haver muita gente a sair daqui, para ir habitar outros locais, onde tivesse melhores condições de vida. Nunca uma saída compulsiva, mas voluntária, pois é possível viver melhor noutros locais que não Luanda. Digo mesmo que hoje Luanda é o pior sítio para viver em Angola. Está certo que a guerra foi um factor extremamente negativo, mas não explica tudo. Acho que a guerra e o petróleo foram os grandes males que Angola teve. Em relação à guerra, não há que dar explicações, pois é uma verdade insofismável. Mas em relação ao petróleo já não. Toda a gente, sobretudo a classe dirigente, baseou-se no petróleo para traçar programas, esquecendo-se de tudo o resto: agricultura, pescas, indústria transformadora, extractiva, enfim, tudo aquilo que fazia de Angola um país com um papel importante em toda a África Austral ou mesmo em todo o continente, pelas suas imensas potencialidades.
Em concreto, como qualifica os vários tipos de construção na cidade, sobretudo, aqueles que surgiram nos últimos tempos?
No que diz respeito à arquitectura, Luanda transformou-se num desastre, não só pela dimensão das construções, que a mim não fazia qualquer espécie de mossa, se as infra-estruturas viárias e tudo o resto (saneamento básico, abastecimento de energia e água) tivessem correspondido ao mesmo crescimento que tiveram as construções para cima. Isso não foi acautelado. Onde havia vivendas, surgiram prédios de 15 a 20 andares; não há espaço para estacionamentos; as próprias vias de comunicação não são suficientes para o tráfego que isso desenvolve e, portanto, tudo isso resultou numa situação muito difícil.
Com que impressão fica quando olha para as construções que surgem quase como cogumelos, em diferentes bairros de Luanda?
Na periferia, acho que não estamos a construir nada; as próprias centralidades são um desastre. Eu não sei quem é que teve a ideia de fazer centralidades, porque, efectivamente, a centralidade não funciona: não há ocupação, é notória a ausência de serviços, enfim, uma vida que permita ter um emprego para quem ali vive. Isso implica a deslocação das pessoas para os sítios do emprego, que continua a ser na “Luanda velha”. A gente vê o caos em que se transformou o trânsito para as pessoas que vivem nas centralidades; gente a sair do Talatona, Kilamba, Sequele e outros locais, para levar , por exemplo, o filho à escola, ir ao banco ou procurar outros serviços nos diferentes departamentos ministeriais. Uma confusão que deveria ser evitada com uma melhor planificação e um trabalho melhor pensado.
Definitivamente, está a dizer que as centralidades não funcionam nas suas várias dimensões?
Ora, o que se pretendeu com a construção das centralidades? Criar alojamento, habitação para as pessoas e para que tipo de pessoas? Foi isso ou mais do que isso? Pensou-se que as centralidades eram para resolver a habitação social? Não há habitação social num décimo andar, porque os custos de viver num prédio de 15, 20 ou mais andares, onde os elevadores não funcionam, o abastecimento de água, bombagem, custos do condomínio e tudo isso não é pensável que uma centralidade possa ser um local para habitação social. Definitivamente, as centralidades não são para resolver os problemas da habitação social, não têm características para isso. Por isso, não me atrevo a idealizar Luanda, porque, no estado em que ela está, vai ser preciso partir muita coisa para ser fazer uma Luanda, uma cidade do futuro, governável, onde haja qualidade de vida, onde as pessoas tenham prazer de viver. Hoje, Luanda não tem nada disso. Está de tal modo deformada, que, para endireitar, sinceramente, acho que era preciso haver aqui operações extremamente traumáticas e isso vinha causar outro tipo de problemas, que não sei se era viável ou não pensar nisso.
O engenheiro conhece o Plano Director Metropolitano de Luanda? Não é a saída para os problemas de uma mega-cidade como a capital angolana?
O Plano Director Metropolitano é, de facto, um instrumento de grande valia. Não digo que seja perfeito e também não era de esperar que o fosse. Mas é, efectivamente, uma forma de ordenar a cidade. Numa área com a extensão que Luanda tem (e estamos a falar praticamente da Barra do Dande à Barra do Kwanza), com a inexistências de dados estatísticos, falta de elementos também técnicos, preparar um plano director perfeito ou próximo da perfeição era uma utopia. Este Plano Director tem muito mérito, mas não é perfeito e, naturalmente, como todas as coisas, terá emendas ao longo do seu desenvolvimento. Ele não contempla questões muito sérias, como o saneamento básico de uma forma correcta. Por exemplo, concentrar todo o saneamento dos esgotos domésticos, em toda essa área metropolitana, em duas Estações de Tratamento de águas residuais não é uma boa opção para a funcionalidade da cidade. Pensar que todos os esgotos daqui vão ter a Cacuaco e vão ser lá tratados não está certo. Só para mandarmos para Cacuaco, quantas estações elevatórias vamos precisar? Ter um centro em Cacuaco e outro nos Ramiros acho que é um disparate.
Mas o saneamento é o principal problema para a administração de uma cidade com a dimensão de Luanda?
Na verdade, as deficiências no saneamento básico são um problema crucial de Luanda, não só para o saneamento propriamente dito das águas domésticas, mas também das águas pluviais. É só ver o que acontece quando surgem chuvadas mais fortes; ver como ficam alguns bairros da cidade, como o Sambizanga, Rangel, Marçal e tantos outros. Ver pessoas a viver com água à cintura. É, de facto, difícil, doloroso mesmo…
Além das insuficiências que aponta, quais são as outras saídas para dar qualidade de vida aos habitantes da cidade capital. É adepto, digamos, das demolições?
Mas isso é inevitável. Tem de haver demolições, infelizmente. Há construções nos bairros periféricos, onde as populações utilizaram terrenos que estavam aparentemente disponíveis. Mas são linhas de água que têm de ser respeitadas, porque, tapando-as com construções, estamos a criar problemas e não a resolver problemas de ninguém. Não são só essas construções, mas outras que forem necessárias para limpar essas linhas de água e criar pontos de escoamento, respeitar a natureza, que tinha as suas linhas de água que funcionavam. Elas estavam lá, porque eram necessárias para o escoamento das águas pluviais. Temos edifícios de betão armado quatro a cinco andares em cima de uma linha de água e não faz sentido. Têm que ir abaixo.
Mas tem existido fiscalização …?
Isso não tem nada a ver com a fiscalização, mas com a autoridade. Isso mesmo: falta de autoridade e de planeamento. Ou aquilo é uma construção clandestina – e a fiscalização deveria actuar – ou é uma construção autorizada – quem autoriza são os departamentos, que deviam ter negado. Facilitou-se muito; há tráfico de influências; há muitos interesses que, por vezes, entram na decisão das entidades com o poder de o fazer e isso leva a aberrações autênticas. Mesmo no corpo da cidade, da chamada cidade baixa, há edifícios que estão nitidamente a estornar o desenvolvimento da cidade, nomeadamente, a abertura de vias. São edifícios que nasceram agora, foram construídos recentemente e nunca o deveriam ter sido, sem que primeiro se resolvesse o problema da rede viária, já que, sem vias, não há circulação, não há mobilidade, não há redes técnicas de esgotos e outros serviços. Esses edifícios vieram criar mais dificuldades, mas a verdade é que apareceram e autorizados. Um exemplo: O que se está a passar nas encostas da Fortaleza de S. Miguel é um crime para a cidade. É um crime terem destruído o mercado do Kinaxixi, terem transformado aquela praça, para depois aparecer aquele conjunto de edifícios inacabados e não sei se alguma vez vão acabar de uma forma correcta. Aquilo não trás serventia nenhuma para a cidade. A única serventia que teria era no “boom” de construção e especulação, enriquecer mais os seus promotores. Havia tudo isso e as pessoas sonharam que, por haver petróleo e recursos financeiros e ser fácil ir buscar dinheiro ao banco, se poderia trabalhar na especulação imobiliária. E o resultado é este: quantos edifícios estão feitos e desabitados? Essa especulação imobiliária não deixou de existir.
Qual é a explicação, em rigor, para a existência de tão elevado número de edifícios não habitados, mesmo em áreas nobres, como o Talatona, por exemplo?
Não só no Talatona, aqui mesmo na cidade, quem sobe aí o eixo viário, há edifícios praticamente desocupados. Aliás, nunca foram ocupados, porque os promotores foram apanhados nesta crise. Isto sob o ponto de vista dos interesses de quem pensava fazer a especulação imobiliária é terrível, perfeitamente negativo e depois tem influência sobre o resto. Esses edifícios não foram construídos com capitais próprios, mas com recurso à banca e agora que pague a banca, que está como está.
Qual é a solução para os edifícios velhos da cidade, muitos dos quais já se apresentam em avançado estado degradação?
Estes deveriam ser mantidos. É mesmo um crime ter destruído o mercado do Kinaxixi. Um crime se ter transformado o edifício da antiga Fazenda (actual Ministério das Finanças). Um edifício lindo que havia, agora feito um caixote de vidro, sem estética absolutamente nenhuma. O edifício do antigo Instituto do Café, que é hoje o Ministério do Interior, também já está “vestido” de vidro por todos os lados, enfim, não se entende porquê é que isso tem de acontecer! Deveriam ser preservados, como se faz noutras partes do mundo.
A requalificação de Luanda é um desafio actual. Diga-nos quanto tempo deve levar?
Esse é o caminho, sem dúvida. Só não sei quanto tempo isso vai demorar e que recursos vai isto exigir. Não há outro caminho; tem de ser devagar, de acordo com as possibilidades, mas tem de obedecer a um plano, que pode ter a sua base no Plano Director Metroplitano de Luanda. O Plano Director dá-nos as linhas gerais, mas os planos de pormenor têm, de facto, de ser muito bem pensados e tem de haver estruturas, instituições do Governo Provincial de Luanda.
Essas estruturas já existem e, ao que parece, com alguma organização …
Certo, essas estruturas existem, mas estão esvaziadas, porque as instituições foram desmanteladas para passar a haver vontades pessoais
e linhas de actuação em que quem decidiu sobre os problemas técnicos de Luanda não foram os técnicos, mas os políticos, que não percebem nada disso. Os técnicos foram postos de lado, porque não são necessários, até atrapalham. Veja, por exemplo, como é que nasce um Aeroporto Internacional de Luanda sem ninguém saber. Ninguém soube; as pessoas souberam que existia um projecto para ser construído um aeroporto, quando viram as vedações daquela área próxima de Bom Jesus, com os taipais dos dísticos chineses. Só assim é que as pessoas souberam que estava a ser erguido um aeroporto. O Laboratório de Engenharia não foi consultado, os Ministérios, dos Transportes, as autoridades aeronáuticas não foram consultadas.
É quase inacreditável?
Estou a falar-lhe a verdade! Como é que aparece um Aeroporto Internacional … É uma decisão política, quando deveria ser técnica e que se baseasse em estudos técnicos. Aí, sim, as coisas seguiriam um caminho normal. E agora o resultado é este: nas acessibilidades ninguém pensa, do que se pensou nada foi feito e agora é que anda tudo a correr para se fazer acessos ao aeroporto. Entretanto, projecta-se uma cidade aeroportuária à volta, para as pessoas poderem dormir lá em hotéis e apanhar os voos de manhã muito cedo.
Qual é o conhecimento que tem das obras que estão a ser feitas no interior do país, nomeadamente, as centralidades?
Quanto às centralidades, continuo a ter a mesma opinião: não são para nada, são um problema. Eu não concebo, por exemplo, que, no Dundo, haja edifícios na centralidade com 12, 14 ou 16 pisos. Mas quem é que se sente feliz a viver nesses prédios? Não deveriam ter feito isso. O que deveriam ter feito era criar habitação, mas de acordo com a cultura dos angolanos. Nós não tempos falta de terreno, poderíamos ter edifícios de dois ou três pisos, no máximo, onde não fossem necessários elevadores, bombas de água, enfim, onde não fosse necessário tudo aquilo que é mau. Porquê, se nós não estamos na China. Aí talvez fosse a solução para eles. Mas o remédio para resolver os nossos problemas, alguém perguntou aos técnicos? Ninguém perguntou nada. Claro que poderíamos ter edifícios com até quatro pisos no máximo, onde as pessoas podem aceder mais facilmente por escada, sem necessidade de bombas de água e outros equipamentos. Podia ter-se uma noção, uma dimensão muito mais apropriada à nossa realidade e não irmos copiar modelos que podem ter sido muito bons lá onde foram criados, mas que aqui não se adaptam, não fazem parte dos nossos hábitos, rigorosamente. Não sei quem é que pensou nelas, que decidiram e isso independentemente da qualidade das próprias obras. Há umas com uma qualidade mais ou menos sofrível, outras que não têm qualidade nenhuma.
Pode avançar obras mal feitas, devido a uma deficiente ou nula fiscalização?
Não quero citar. Certo é que há obras que foram feitas por empresas e talvez tenham sido fiscalizadas por empresas devidamente habilitadas e outras que o foram ou não por empresas que não tinham qualidade para poder realizar esse trabalho. A fiscalização é um parente pobre da construção, porque não há a noção do interesse no seu valor, pois muitos entendem que a fiscalização é uma perda de dinheiro; que não faz falta nenhuma. Porque a ideia é esta: eu sou dono da obra e quero fazer um edifício. Se tiver um projecto e um empreiteiro, eu faço o edifício. Não preciso de fiscalização para nada. Mas os problemas vão aparecer a seguir: falta de qualidade, redes técnicas e a própria qualidade da construção, mal feita, paredes empenadas, infiltrações de água e todos os outros males, perfeitamente evitáveis com uma fiscalização idónea. É uma situação recorrente. O dono da obra pensou em poupar dinheiro, evitando pagar até três por cento do valor da obra. Mas esqueceu-se que poderia poupar mais, se, de facto, tivesse uma fiscalização actuante, capaz de analisar o projecto, verificando as deficiências que existiam e controlando o trabalho do empreiteiro. Na verdade, o dono da obra pouparia muito dinheiro, mas vai gastá-lo a seguir, na reparação de danos. \”Poupando” dinheiro na fiscalização, ele não ganhou nada, mas esta é a cultura instalada: fiscalização não interessa, não é grande coisa.
E ligado a isso, qual é realidade nas obras públicas feitas em todo o país?
Nas obras públicas é a mesma coisa. A gente vê em que estado é que as estradas estão. Realmente, não se justifica que estradas construídas ou reconstruídas há meia dúzia de anos estejam no estado em que estão. Gastou-se muito dinheiro. Alguns dos empreiteiros que fizeram mal o seu trabalho já se foram embora; outros ainda estão por aí, mas ninguém lhes pede responsabilidade. Ora, uma estrada é uma obra pública e, de acordo com a Lei, tem cinco anos de garantia e, durante esse período, o que estiver mal feito o empreiteiro deve corrigir. Quem pediu responsabilidades? Ninguém. E a fiscalização que esteve lá, se esteve, o que esteve a fazer?
Mas a fiscalização que existe em Angola é ou não credível?
Muitas dessas fiscalizações foram fabricadas, foram postas lá muito a pressa; foram constituídas empresas às quais foram adjudicadas essas fiscalizações. Empresas de “import & export”, sem “know how”, técnicos incapazes e sem prova nenhuma de capacidade, mas lhes foram entregues obras, através do sistema que agora se chama de \”contratação simplificada\”. Uma situação com todos os condimentos para o surgimento de muitas inconformidades nas obras. É verdade, eu tenho uma obra qualquer, sou eu que decido quem vou lá fiscalizar – um primo ou amigo – e não há responsabilização absolutamente nenhuma.
Ainda viaja por estrada, como no passado? Tem exemplo de troços de troços que são exemplos do que está mal feito?
Já não anda muito por estrada. A idade já não permite …. Mas digo que há estradas mal feitas, como aquele troço que sai do Sumbe para o Lobito. Porquê? Mais uma vez, falta de fiscalização. Mas também há outras bem feitas, como aquela entre a cidade do Huambo e Cuito. Na generalidade, as estradas que foram feitas depois de terminar o conflito foram mal feitas. O que era necessário, na altura, era tapar buracos, para permitir a passagem. Tudo bem. Mas poderia ser muito melhor e os custos que tivemos para tapar esses buracos quase que davam para fazer, de facto, uma reabilitação capaz de ainda hoje termos estradas em condições para uma circulação segura. Há outras estradas que estão agora a ser feitas, como a do Nzeto/Soyo, Saurimo/Lucapa/Dundo, que obedecem aos mais elementares padrões da engenharia. Mas repito: a importância da fiscalização deve ser assumida pelas autoridades e pelos investidores como algo incontornável.
O Laboratório de Engenharia cumpre, na plenitude, o papel que lhe está reservado?
O Laboratório de Engenharia, pelos reflexos que a sua actuação teve no passado, esteve muita limitada. A sua acção não se fez sentir, por falta de capacidade, falta de meios; por não ser necessário, porque também era um órgão de fiscalização, nomeadamente, das obras públicas que, se calhar em muitos casos, não interessava. O Laboratório de Engenharia é o principal fiscal das obras públicas e a sua acção é, nomeadamente, aferir a qualidade, os ensaios do material que é aplicado, ensaios finais, tudo isso. O Laboratório é um órgão fundamental da fiscalização. Nas últimas decisões que foram tomadas pelo Ministério da Construção há, nitidamente, o regresso do Laboratório ao seu papel que sempre deveria ter tido e que, durante muitos anos, deixou de ter. E isso hoje sente-se.
JA