O que começou como uma greve de taxistas rapidamente revelou as fissuras profundas de uma cidade onde as franjas urbanas vivem à margem da cidadania.
Em bairros como Cazenga, Viana, Caop e Mulenvos, relatos de execuções sumárias, espancamentos e detenções arbitrárias de jovens têm chocado o país e denunciado uma resposta estatal marcada por repressão desproporcional e ausência de soluções sociais estruturantes.
A governação titubeante, incapaz de antecipar ou conter o descontentamento crescente, vê-se agora confrontada com um cenário de colapso da autoridade moral e legal nas zonas mais vulneráveis de Luanda.

Declaração de “segurança calma” pelo ministro do Interior contrasta com imagens de repressão, denúncias de execuções e crise social nos bairros periféricos veiculadas por testemunhas nas redes sociais.
O ministro do Interior, Manuel Homem, declarou esta quarta-feira que “a situação de segurança no país é calma”, após dias marcados por motins, actos de vandalismo, pilhagens e repressão violenta que deixaram 22 mortos, 197 feridos e mais de 1.200 detidos, segundo dados provisórios apresentados à margem da 7.ª Sessão Ordinária do Conselho de Ministros.
A declaração oficial contrasta fortemente com denúncias de execuções sumárias, vídeos que circulam nas redes sociais e relatos dramáticos de moradores de bairros como Cazenga, Viana, Mulenvos e Cacuaco, que apontam a Polícia Nacional como autora de múltiplas mortes, muitas delas à queima-roupa e diante de familiares.
Explosão social começou com greve de taxistas e expôs uma crise estrutural
A greve dos taxistas, inicialmente motivada por reivindicações económicas e operacionais, paralisou a capital e rapidamente degenerou em confrontos violentos nas zonas periféricas, onde a tensão social é amplificada por anos de exclusão, desemprego e informalidade crónica.
A resposta das autoridades foi rápida e musculada. Mais de 1.200 pessoas foram detidas, a maioria jovens moradores de zonas suburbanas, agora a enfrentar julgamentos sumários. No Palácio Dona Ana Joaquina, já começaram a ser ouvidos os primeiros grupos de detidos — 17 arguidos divididos em dois processos.

Ordem dos Advogados mobiliza-se para garantir legalidade dos julgamentos
A Ordem dos Advogados de Angola (OAA) anunciou que está a constituir equipas de defesa jurídica para acompanhar os julgamentos dos detidos. Em comunicado, o Conselho Nacional da OAA apelou à mobilização da classe, com o objectivo de garantir o respeito pela legalidade, imparcialidade e pelos direitos constitucionais dos arguidos.
“Trata-se de um dever cívico e jurídico. A OAA é um órgão auxiliar da administração da justiça e não pode ficar alheia quando mais de mil cidadãos estão a ser julgados em condições excepcionais”, lê-se no documento.
População acusa a Polícia Nacional de execuções sumárias nos bairros
Enquanto o Governo garante que a situação está sob controlo, moradores denunciam mortes cometidas por agentes da Polícia Nacional, em acções repressivas nocturnas, particularmente nos bairros Cazenga, Mulenvos, Caop, Kilamba Kiaxi e Cacuaco.
- No Cazenga, seis jovens terão sido mortos, um deles junto à loja “Arreiou”.
- Na zona da Caop, uma mulher foi alvejada mortalmente diante do filho de 12 anos.
- Em Viana e nos Mulenvos, há relatos de execuções silenciosas, à margem da legalidade.
- Vídeos nas redes sociais mostram jovens a serem espancados e baleados por agentes à queima-roupa.
Apesar das denúncias, a última comunicação oficial da Polícia Nacional mantém o número de mortos em 22, cifra contestada pela população e por organizações da sociedade civil.
ANÁLISE EDITORIAL – Correio Digital
A crise que eclodiu em Luanda não é apenas fruto da agitação dos taxistas. Ela reflecte um sistema urbano desigual, onde milhões vivem em bairros sem saneamento, com desemprego juvenil elevado e sem respostas estruturais do Estado. O recurso à repressão violenta revela um défice de diálogo institucional e um vazio de políticas públicas eficazes.
O contraste entre a declaração de “calma” do Governo e as denúncias de violência policial e mortes gera um sentimento de revolta, medo e desconfiança na população, principalmente entre os jovens, que se sentem excluídos da narrativa oficial do país em paz.