De repente, os travões falharam. Isso foi lamentável, pois o antigo Peugeot 404 estava numa colina. Começou a rolar encosta abaixo, incontrolavelmente. Naquele dia, Kabila tinha ido dar uma volta, como sempre faz, pelas estradas de Kingakati com seu motorista.

O raïs passa grande parte do seu tempo nos 19.000 hectares de parques verdes e montanhosos, que descobriu quando chegou ao poder, há 21 anos.

Embora a área esteja a apenas 50 km de Kinshasa, parece mais longe, pois o ar é puro e suave. Sente-se calmo ao admirar estas imensas terras e contemplar os animais. Bois, porcos, vacas, galinhas… O estadista não só se tornou agricultor, criador e proprietário de terras aqui, mas também em sua província natal de Katanga e Congo Central. Ninguém sabe exactamente quantas fazendas ele possui.

Kabila ama suas zebras, girafas e leões mais do que qualquer outra coisa. Existem até rinocerontes. Kabila importou uma verdadeira savana. “Ele é uma criança, está a interpretar o fazendeiro cavalheiro”, diz um de seus visitantes regulares.

“A obra da sua vida também está aqui. Ele pode passar horas a olhar seus animais”, diz um de seus conselheiros. “Eu o vi agachado na relva alta ao lado de um leão. Ele fala com eles, os alimenta. Ele os encara, e isso é suficiente para acalmá-los.” Quando ele se aventura na sua reserva particular, Kabila ostenta um BOB e uma câmera pendurada no ombro.

Animal de sangue frio

No dia 19 de Dezembro de 2021, por volta das 17h30 – hora em que a luz finalmente fica mais suave – o cáqui 404, que é um dos dois veículos de colecionador do ex-presidente que data de 1974, teve problemas nos travões. O carro tem a mesma idade do dono. Nem sequer tem cintos de segurança nos bancos de couro. O acidente nunca teria acontecido se Kabila tivesse levado seu Land Rover.

Este fã de desporto logo percebeu que não havia nada que ele pudesse fazer, especialmente porque não estava ao volante. O carro capotou várias vezes. Era assim que ele, o filho da guerra, ia morrer? Num acidente de trânsito? Durante toda a vida estivera convencido de que acabaria como o pai: com uma bala na cabeça.

No dia seguinte, a sua comitiva distribuiu discretamente uma foto dele de pé no terraço da sua casa de paredes laranja. Na foto, está com uma liga na mão esquerda, o único sinal visível do acidente. Como de costume, o ex-presidente permaneceu impassível e, oficialmente, tudo estava bem. “Mesmo quando ele está magoado ou com raiva, ninguém se apercede. Ele nunca mostra nada ”, diz um de seus assessores. Kabila é um animal de sangue frio.

As aparências podem enganar. Mesmo que ele tenha tentado manter isso em segredo, a viagem deixou mais cicatrizes do que ele está disposto a admitir. Ainda hoje, parte de seu círculo íntimo negou e nos garante que eles “não estão cientes disso”. No entanto, de acordo com várias fontes, Kabila levou um choque durante o acidente. Estava com medo, e ele tinha várias costelas quebradas.

Os exames no Hospital Marie-Olive-Lembe-Kabila, financiados por sua esposa, não foram suficientes, então um mês depois ele decidiu ir para a África do Sul. África do Sul de novo? O ex-presidente faz viagens regulares de volta para lá, o que incomoda e preocupa o governo congolês. Desde que a aliança com seu antecessor foi rompida há mais de um ano, Tshisekedi está de olho nesse homem que, desde seus primeiros anos no maquis.

De sua parte, mesmo fingindo indiferença, Kabila se sente maltratado por seu ex-aliado Tshisekedi. Para realizar a sua última viagem, teve que obter permissão da Agence Nationale de Renseignements (ANR), que levou quatro dias, antes que ele pudesse decolar para Joanesburgo – ele usou um Falcon-500 em vez de dirigir de Lubumbashi e cruzar 2.000 km da África Austral como ele costuma fazer.

Tshisekedi tornou-se paranóico!

Duas semanas depois, em 9 de Fevereiro, seu irmão mais novo, Zoé, enfrentou dificuldades semelhantes. No aeroporto, o ex-governador de Tanganyika foi informado de que não poderia voar para a África do Sul, onde deveria se juntar a Kabila. Em vez disso, foi convidado a ir ao escritório do chefe da ANR, Jean-Hervé Mbelu Biosha. “Tshisekedi tornou-se paranóico!” dizem os próximos da raïs.

O regime congolês não quer que a família Kabila faça essas viagens, especialmente porque parte dos bens do clã estão domiciliados lá. No entanto, a razão oficial do ex-presidente para fazer essas viagens, quando não são de natureza médica, é para que ele possa continuar seus estudos na Universidade de Joanesburgo. Defendeu o mestrado no dia 22 de outubro e acaba de se matricular no doutorado para preparar uma tese em ciência política.

Ele conta aos visitantes que a história africana, principalmente a do Congo, é o que o fascina. O jovem aposentado pesquisou muito sobre esses assuntos. Ele também viaja para ver sua família – algumas de suas irmãs, cunhadas, sobrinhos e sobrinhas moram na África do Sul – e espera ir em breve para Barcelona, ​​na Espanha, para ver seu filho, que está aprimorando suas habilidades no futebol. .

‘Estão a tentando causar-lhe problemas’

Na África do Sul, ele também se reuniu com alguns de seus antigos companheiros, como Kikaya Bin Karubi, seu assessor, e Alexis Thambwe Mwamba, ex-presidente do Senado, que sofreu impeachment em 2021. O país, pergunta-se? Enquanto isso, em Kinshasa, “Kabila viu seus vizinhos”, diz um de seus amigos íntimos. Na sua última visita – embora beba muito pouco, não fuma e come apenas alimentos orgânicos – Compartilhou algumas taças de vinho com eles. Estavam ansiosos para conhecer um ex-chefe de Estado.

Não devemos esquecer que Kabila é a razão através da qual a democracia voltou.

“O regime congolês está a lhe dar trabalho. Eles o incomodam um pouco, tentam causar problemas para os seus próximos”, diz um de seus assessores. “Mas como reagiu quando soube que Zoe foi impedida de viajar? Riu!”

Grave acusação

Mesmo assim, há motivos para preocupação. Durante a permanência de Kabila na África do Sul, François Beya foi preso por agentes da ANR em 5 de fevereiro de 2022. O conselheiro de segurança do presidente, que até então era todo-poderoso, caiu. O motivo não foi claro, mas de acordo com o porta-voz do presidente Tshisekedi, ele “age contra a segurança nacional”.

Isso coloca o ex-chefe de Estado numa posição delicada. Apesar das aparências, “Kabila está muito preocupado, Beya era o elo entre Tshisekedi e ele”, diz um diplomata. Ele estava a desempenhar o papel de mensageiro, resolvendo mal-entendidos e autorizando viagens. Beya, que serviu a RDC desde Mobutu, era – de fato – o chefe da Direction Générale de Migration sob Kabila.

Segundo várias fontes, ele é acusado de ser muito próximo do ex-presidente, suspeito de tentar desestabilizar o Estado. Essas são acusações sérias, que foram alimentadas por um tweet de Karubi. Publicado no mesmo dia da prisão de Beya, o tweet reiterou que a África estava a passar por uma “cascata de golpes” e garantiu que a RDC não seria “poupada”. 

Esta mensagem, que o círculo íntimo de Kabila está a tentar esquecer, foi rapidamente apagada. “Desde seu exílio, Kikaya está deprimido. Kabila não tem nada a ver com isso”, diz um membro da unidade de crise da Frente Commun pour le Congo (FCC), a coligação do ex-chefe de Estado. A tensão é tanta que muitos tentaram dissuadir Kabila de retornar à RDC.

Ele hesitou, mas finalmente voltou a 11 de Fevereiro, pois tinha que provar que não tinha nada a se censurar. No regresso, instalou-se na sua residência GLM em Gombe, no centro de Kinshasa. Ao fazer isso, ele estava a passar uma mensagem às autoridades que estava lá e não se esquivaria, mesmo que não aparecesse. Desde que perdeu o poder, suas aparições públicas são tão raras quanto os seus discursos.

Vida privada

Talvez seja essa discrição absoluta, combinada com extrema cautela, que intriga tantos. Muitas pessoas acham que o mistério é uma fonte de intriga. É verdade que Kabila prefere sair de Kinshasa à noite, quando a cidade dorme e ninguém o vê. Ele prefere receber a maioria de seus visitantes num prédio anexo, em vez de em sua vila. Como seu pai antes dele, ele guarda zelosamente sua vida privada.

Uma coisa é certa: Kabila é assustador. No entanto, as pessoas próximas a ele juram que ele nunca sonhou em desestabilizar o Estado. “Ele tem um profundo respeito pelas instituições. Não devemos esquecer que ele é a razão pela qual a democracia voltou”, diz Raymond Tshibanda, que preside o comitê de crise da FCC.

 “Pela primeira vez, graças a ele, houve uma transferência pacífica do poder em 2019. Um dia, a justiça será feita.” Se ele voltar um dia, será quando tiver certeza de uma vitória, e isso não será em 2023.

Kabila espera que sim, do fundo do coração. Depois de 18 anos no poder, não é fácil se livrar da sensação de que foi feita uma injustiça. A comunidade internacional o vê como um pária, quase um pária, mas ele está convencido de que a história o favorecerá no final. Entre duas caminhadas em sua terra, o senador vitalício escreve suas memórias. Todos devem se lembrar do estado em que fundou o país em 2001 e o que fez por ele.

O ‘menino’ virou raïs

No espaço de 21 anos, a RDC mudou, mas talvez menos do que o próprio Kabila. No seu rosto de barba grisalha, não há mais vestígios do jovem imberbe que se tornou presidente por acaso quando o seu pai morreu. “Joseph [Kabila] é tímido, não consegue olhar as pessoas no rosto. Nunca vi nele nenhuma capacidade de liderança”, disse o general ruandês James Kabarebe na época.

O “pequeno”, como era apelidado, nunca havia pedido nada. A vida clandestina ao lado do pai nos anos 1990, comandando homens, militares, depois a presidência… É quase como se sua vida nunca tivesse sido totalmente sua. Aquele a quem seus oponentes queriam apresentar como filho adoptivo nunca clareficou a neblina que cercou a primeira parte de sua existência.

“Deixe-o em paz”, diz um de seus conselheiros mais próximos. Kabila engordou e, ao longo de seus 18 anos como chefe da RDC, ele realmente aprendeu a comandar. “Ele se parece cada vez mais com o pai”, diz um membro de seu partido. Muitos visitantes acreditam que este homem que sofreu seu destino agora anseia por tranquilidade.

Cortesia e traição

Raramente intromete-se nos assuntos da FCC e, quando o faz, é quase por obrigação. “Ele dá ordens e toma decisões sobre questões importantes”, diz Tshibanda. O fim da sua aliança com Tshisekedi, bem como a perda de sua maioria na Assembleia Nacional e no Senado no final de 2020, obrigou-o a permanecer em guarda. “Foi um choque”, diz ele.

“Não há espaço para dois na pele de um leopardo”, dissera-lhe uma vez Tshisekedi. Kabila havia subestimado seu rival . Ele, sua família e sua fortuna não estão mais protegidos. Ele aprendeu isso da maneira mais difícil. Sair de uma posição onde a bajulação abunda também significa experimentar a traição e encontrar uma certa solidão.

Desde as eleições de Dezembro de 2018, o Parti du Peuple pour la Reconstruction et la Démocratie (PPRD, o antigo partido no poder) e a FCC parecem estar surpresos. O ex-presidente não está a fazer nada para reviver sua família política, atormentada por rivalidades internas. Faltando menos de dois anos para a eleição presidencial, ele deu sinal verde para entrar em contacto com Moïse Katumbi e Martin Fayulu, mas não designou um sucessor.

Kabila poderia ser tentado a voltar ao poder? 

Pessoas próximas a ele dizem que ele recuperou alguma popularidade, mas, por outro lado, os círculos diplomáticos acham altamente improvável. “Se ele voltar um dia, será quando tiver certeza da vitória, e isso não será em 2023”, diz um diplomata. “Hoje, o partido dele é tão fraco que quase esquecemos que Kabila existe.” O ex-chefe de Estado de 50 anos não está morto. No entanto, ele pode conseguir ser esquecido mantendo-se discreto.

AR