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Putin pode ser condenado por crimes contra a humanidade na Ucrânia?

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O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, usou sua conta no Twitter, neste domingo (27/2), para dizer que o país protocolou queixa contra a Rússia na Corte Internacional de Justiça pelas agressões ao seu território.

Ele espera que o processo faça os russos baixarem as armas. Mas: o presidente russo, Vladimir Putin, pode ser condenado internacionalmente por crimes relacionados à invasão?

Hoje, a maior parte das circunstâncias é favorável para que Putin passe incólume a uma responsabilização criminal em tribunal internacional, embora haja algumas brechas que poderiam levá-lo a julgamento, segundo especialistas e profissionais que atuam em cortes internacionais ouvidos pelo.

De início, há uma diferenciação importante a ser feita: a ação aberta pela Ucrânia é contra o Estado russo. A Corte Internacional de Justiça (ICJ, na sigla em inglês), instalada em Haia, na Holanda, lida com casos entre Estados, e não contra indivíduos na esfera criminal.

O espaço para julgar a responsabilização penal individual por crimes graves contra a humanidade é do Tribunal Penal Internacional (TPI ou então ICC, na sigla em inglês), também em Haia. A criação da corte se deu com o Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 2002, e atualmente tem 123 países comprometidos. É nessa corte que Putin, eventualmente, poderia sofrer uma condenação criminal fora da Ucrânia e da própria Rússia.

O Estatuto foca em crimes contra a humanidade, de guerra, genocídio e de agressão. Esse último passou a ter efeitos apenas em 2018 e trata especificamente do uso da força de um Estado contra o outro e da invasão de países, como é o caso no Leste Europeu. A questão é que tanto a Rússia quanto a Ucrânia não ratificaram o documento de Roma.

Em principio, então, o TPI não teria jurisdição para atuar contra cidadãos dos dois países, em especial porque a Ucrânia não poderia reclamar. Porém, na prática, essa restrição vale mais para o crime de agressão, enquanto as outras violações têm uma possibilidade de tratamento especial.

“Sem ratificar o compromisso, a Ucrânia pode dar jurisdição para o TPI investigar crimes de guerra e contra a humanidade em seu território, como aconteceu na anexação da Criméia em 2014. Qualquer país poderia fazer isso”, afirma Sylvia Steiner, que integrou o grupo de trabalho para implementação do Estatuto de Roma no Brasil e foi juíza no TPI entre 2003 e 2016.

Assim, seria possível que o Tribunal investigasse, julgasse e condenasse envolvidos nesses crimes em território ucraniano, independentemente da nacionalidade. Caso os crimes aconteçam em território de país membro ou contra cidadão de nacionalidade parte, os autores de países de fora do acordo poderiam ser responsabilizados.

Além disso, a Ucrânia ratificou um tratado sobre privilégios e imunidades que concede aos funcionários e instâncias do TPI para que desempenhem sua função com imparcialidade, o que também poderia dar margem para que a corte investigue crimes contra nacionais ucranianos ou no território do país. O documento entrou em vigor em 2004.

Caso a Ucrânia ratifique o Estatuto de Roma neste momento, ela poderia permitir jurisdição retroativa, segundo Steiner. “Uma vez que um Estado se torna parte, ele tem a vantagem de poder abrir um caso, mas a desvantagem é que ele precisa cumprir as regras. Por isso, muitos países não aceitam”, aponta Steiner.

Nesse sentido, além da Rússia, outras potências militares não se submetem ao TPI, como Estados Unidos, Israel e China. “O desafio com esses casos de não-participantes é enorme. O Tribunal já lida, sem grandes avanços, com crimes de guerra envolvendo soldados de Israel e também americanos no Afeganistão, já que foi em território de signatários”, explica Flávio Leão, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em genocídios e direitos humanos.

Há também as próprias dificuldades de responsabilização pessoal que enfrenta o sistema criminal, e que poderiam dificultar chegar a Putin no caso de ações no campo de batalha. “Precisam estar demonstradas algumas condutas do presidente e do alto comando das Forças Armadas por fatos específicos que configurem crime de guerra. Não basta o papel deles na Constituição”, avalia Steiner.

Outra barreira que poderia livrar Putin do Tribunal é que só é possível julgar uma pessoa se ela estiver representada ou presente. Os países, participantes do Estatuto de Roma ou não, são estimulados a entregar a pessoa para julgamento, mas é de se esperar que na prática isso seja quase impossível. Apenas no ano passado, por exemplo, o governo do Sudão anunciou que entregaria o ex-ditador Omar al-Bashir, que teve o primeiro pedido de prisão pelo TPI em 2009.

Violações fundamentais

Embora Rússia e Ucrânia não ratifiquem o TPI, elas adotam convenções humanitárias assinadas ao longo do último século, que são endereçadas pelo Tribunal e também pelas Justiças locais globalmente. É o caso das Convenções de Genebra, de 1949, e as emendas feitas pelo Protocolo 1, em 1977. Os documentos tratam de crimes de guerra e impõem limites aos países sobre disputas, com foco em evitar conflitos armados.

Ao adentrar o território ucraniano com as suas tropas, Putin já violaria os dispositivos sobre quando há o direito à guerra: para repelir directa agressão de outro Estado ou como parte de coligação autorizada pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Não se tratou de nenhuma das hipóteses.

“Em seguida, o que se poderá observar, é o cumprimento às regras que os combatentes precisam atender para minimizar sofrimentos para civis e militares feridos ou entregues. Esse direito é baseado não só na norma escrita, mas também em um âmbito de decência humana”, afirma Leão.

As imagens que percorreram o mundo nos últimos dias de bombardeios de edifícios residenciais na madrugada, e indícios de ataques a hospitais, seriam alguns dos indicativos do que deve vir pela frente – e que podem ser, futuramente, configurados como crimes de guerra e contra a humanidade, que incluem homicídios, torturas e desaparecimentos sistemáticos.

Esses crimes são imprescritíveis. Assim, eventualmente, a Ucrânia poderia, no seu próprio sistema de Justiça, julgar autores de ataques à sua população e em seu território. Entretanto, isso só seria factível se o país saísse vencedor do conflito. Por óbvio, eventual governo controlado pelos russos não permitiria esse tipo de movimento.

Inclusive, apenas no caso de omissão das Justiças ucraniana e russa é que o TPI poderia agir, pois ele atua de forma complementar. “Em casos de menor gravidade, o tribunal tende a orientar os Judiciários locais. O foco da procuradoria do TPI é em pessoas de maior poder e com grande potencial probatório”, explica o advogado criminalista Rodrigo Faucz, um dos três brasileiros autorizados a representar no Tribunal.

Por causa desse foco, o TPI prioriza os casos de maior gravidade, a partir de uma análise prévia às investigações, e julga aqueles que possuem material mais robusto. O procurador-geral da corte, Karim A.A. Khan, divulgou nota na última sexta-feira (25/2) afirmando que está acompanhando “com preocupação” o que acontece na Ucrânia, mas citou a falta de jurisdição por os países não serem signatários do Estatuto.

A responsabilidade do Estado russo

O TPI é a primeira corte permanente para lidar com crimes contra a humanidade, mas já houve outras instaladas provisoriamente no mesmo sentido, para lidar com crimes na ex-Iugoslávia e em Ruanda, em 1993 e em 1994, respectivamente. A instalação é pedida pelo Conselho de Segurança da ONU, que também pode encaminhar casos ao TPI.

Esse ponto também é mais favorável ao presidente russo. O órgão é composto por 10 membros não-permanentes, com mandatos de dois anos, além dos cinco permanentes: as potências nucleares China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Esses últimos têm poder de veto, então uma decisão contrária à Rússia poderia ser bloqueada por ela própria.

“Não há dúvidas de que o Conselho reflecte a lógica da Segunda Guerra e da Guerra Fria. É preciso reinventar e democratizar o órgão, pois os valores humanitários só são salvaguardados com multilateralismo”, defende Flávia Piovesan, professora de Direito Internacional da PUC-SP, que atuou como comissária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entre 2019 e 2021.

Para alterar a composição do Conselho, é necessária apreciação de emenda à Carta da ONU, espécie de constituição da Organização, com dois terços dos votos favoráveis à mudança na Assembleia Geral, instância que reúne todos os países membros. Após a invasão,  a Assembleia foi convocada de forma extraordinária para discutir acções, mas uma eventual intervenção ou sanções militares são questões de deliberação exclusiva do Conselho de Segurança.

As violações russas às diferentes convenções humanitárias e à soberania ucraniana também podem ser tratadas na Corte Internacional de Justiça. Nesse caso, é possível haver condenação por acções e omissões de um Estado contra outros.

Além dela, há também a Corte Europeia de Direitos Humanos, que pode investigar e condenar Estados e, se perceber que os devidos processos não foram seguidos, obrigar a reparação e responsabilização de autores.

“Situações excepcionais, mesmo uma guerra, não autorizam a queda de dispositivos fundamentais, como o direito à vida, a proibição à tortura e a liberdade de expressão. Nessas hipóteses, a comunidade pode agir”, diz Piovesan.

Além dos crimes relacionados ao cenário de guerra, outro impacto humanitário relevante esperado a partir do conflito é a fuga da população ucraniana do país conflagrado em busca de refúgio.

“Já há uma mobilização grande para o acolhimento das vítimas da guerra na Ucrânia, inclusive maior do que observamos noutros conflitos”, afirma Victor Del Vechio, consultor em direitos humanos e refúgio.

Não há responsabilizações especificas em relação a esse impacto, já que ele é derivado dos crimes de guerra e contra a humanidade. Por outro lado, os países que ratificam o Estatuto dos Refugiados – principal compromisso para as proteções em torno do refúgio e ratificado por grande parte dos países europeus –, precisarão tomar medidas para evitar que a população vítima da guerra sofra novas violações de direitos.

“O documento permite que pessoas que buscam refúgio sejam acolhidas por esses países. Mas há um abismo grande entre a lei e a prática. Inclusive, esse documento pode ter regulações específicas em cada país, o que deixa margem para que nem tantos direitos sejam garantidos”, avalia o especialista.

A guerra já tirou da Ucrânia 368 mil pessoas, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. A maior parte atravessa as fronteiras do país com a Polônia e, outras fatias, com a Romênia e a Hungria. O órgão estima que 4 milhões de pessoas podem deixar o país, o equivalente a 9% da população local.

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